(neo) Liberalismo?
Liberalismo é um conceito dinâmico, que desperta reações distintas em diferentes pessoas. Para alguns, ao ouvir a palavra liberalismo, logo se vinculam ao termo neoliberalismo, criado por acadêmicos latino-americanos críticos do capitalismo. Tal definição remonta a eventos como privatizações, desregulamentações, arrocho salarial, empréstimos e cobranças do FMI, entre outras supostas mazelas iniciadas nos anos 80 e 90.
A responsabilidade fiscal e o status das finanças públicas não são levados em consideração pelos críticos, pois na visão deles, operar em déficit para promover gastos públicos estimula a demanda agregada. Por conseguinte, a economia é aquecida e estimula investimentos privados, levando a um suposto aumento de arrecadação que compensaria tal déficit. Políticas consideradas neoliberais, que reduzem gastos públicos estruturais e controlam a inflação, impactam diretamente esse hipotético círculo virtuoso de gasto público e crescimento econômico.
Sem entrar no detalhe de qual composição do gasto público vai para a a manutenção da máquina (despesas com pessoal, custeio, juros, etc) e qual vai para investimentos ou transferências (subsídios, subvenções, etc), é válido afirmar que os críticos do liberalismo econômico distorcem completamente a própria visão keynesiana original. Essa observação questiona diretamente as premissas do “gasto corrente é vida”, alardeada por defensores da “nova matriz econômica”.
Keynes defendia que o governo — preferencialmente não endividado — operasse temporariamente em déficit , durante momentos de crise econômica (com deflação), para estimular a demanda agregada e despertar “o espirito animal” dos empresários. Os investimentos privados então retornariam, a arrecadação se normalizaria e o governo poderia diminuir seus gastos e voltaria a ter superavits. Não era antes e não foi depois o caso do Brasil.
Esse déficit poderia ser implementado na forma de investimentos públicos, de subvenções ou até mesmo na redução de impostos (para estimular o lado da oferta). A estagflação dos anos 70 e 80 demonstrou que muitas premissas keynesianas estavam equivocadas, pois agora tínhamos baixo crescimento com alta inflação (o que era inconcebível na época em que Keynes desenvolveu sua teoria econômica). Estimular a demanda agregada com gasto público em um ambiente de alta inflação e alto endividamento não parece mais uma solução razoável.
A preocupação dos críticos do “neoliberalismo”, na verdade reside na vontade de manter a estrutura de gastos do governo estáveis, ou seja, despesas com pessoal, investimentos públicos, controle de setores da economia considerados “estratégicos” por meio de empresas estatais. É guiada por uma verdadeira mentalidade anticapitalista e um ceticismo (ou incompreensão) em relação ao processo de trocas voluntárias que denominamos mercado. Endividamento e inflação eram detalhes a serem ignorados, pois a ciência econômica ortodoxa não tinha credibilidade na visão dos críticos.
Infelizmente a inflação era um problema real para as pessoas de carne e osso, e o endividamento, querendo ou não, limitava cada vez mais a capacidade do gasto público ser o indutor do crescimento. Hoje, o discurso crítico ainda apresenta as mesmas premissas e as mesmas caricaturas, apesar de não terem respaldo no mundo real, dada a baixa inflação após as reformas “neoliberais” no campo monetário e cambial, e o aumento perene dos gastos públicos convivendo com oscilações econômicas.
A discussão hoje continua sendo sobre política fiscal, ou seja, finanças públicas (receitas, despesas e endividamento). Não é à toa que debates acalorados em relação à dívida pública e às despesas com previdência (maior gasto estrutural do governo) são tão comuns. O ponto central é que vincular o liberalismo apenas ao debate econômico proposto pela ciência econômica ortodoxa (além de outras escolas heterodoxas como Escola Austríaca) é um erro tanto por parte dos críticos quanto por seus defensores.
Liberalismo, como filosofia política ou visão de mundo, pode ser dividida em dois pilares: liberalismo político e liberalismo econômico. O primeiro foi consolidado pelas ideias de John Locke, e o segundo por Adam Smith. De certa maneira, as ideias liberais já são aceitas intuitivamente pela maior parte das pessoas, tendo o liberalismo exercido moderação tanto no socialismo como no conservadorismo, contribuindo para o crescimento da social-democracia (Anthony Giddens)e do conservadorismo-liberal (Edmund Burke, Roger Scruton, etc).
Pessoas razoáveis não discutem valores como Estado Democrático de Direito, liberdade de associação, de expressão, de imprensa, etc. Também não rejeitam completamente o conceito de propriedade privada, de comércio internacional e de uma economia produtiva no setor privado. Ainda assim o liberalismo é, de certa maneira, demonizado por pessoas consideradas à esquerda e à direita do espectro político, apesar dos valores absorvidos pelas sociedades contemporâneas pacíficas e prósperas serem liberais.
Como o liberalismo político é considerado praticamente um consenso, com exceção de correntes de pensamento autoritários e idealistas (como o marxismo, o positivismo e o fascismo), a parte mais importante a ser debatida no front das ideias são os conceitos relacionados ao liberalismo econômico.
Além de uma deficiência na compreensão de conhecimentos econômicos formais já considerados convencionais pela ciência econômica, por meio de décadas, e até séculos, de interações e debates de ideias entre economistas, muitas pessoas são céticas em relação à liberdade econômica por não compreenderem a mesma como um todo formado por diferentes partes.
Liberdade econômica não é um bloco monolítico, um conceito único. Vincula-se o conceito à ideia de estado mínimo, seja lá o que isso signifique. Cada sujeito tem uma compreensão diferente do que seria o mínimo ou do que deveria ser diminuído. Muitos empresários reclamam da carga tributária, pequenos empreendedores acusam as regulamentações, os consumidores (e produtores intermediários) denunciam os altos impostos sobre produtos importados (de melhor qualidade e mais baratos em sua origem). Cada pessoa enfoca o pedaço da liberdade econômica que mais impacta a si próprio (dentro de sua percepção).
Os críticos do liberalismo econômico, em contrapartida, expõem o sucesso dos países nórdicos, onde a carga tributária é alta, o welfare estate relativamente funcional, a desigualdade baixa e o PIB per capita muito alto. Ignoram o ambiente de negócios favorável ao empreendedorismo, com regras simples e claras, um sistema de justiça que respeita a propriedade privada e os contratos, uma abertura ao livre comércio entre países e à circulação de capitais.
Países nórdicos enriqueceram durante o século XIX e o início do século XX antes de consolidarem seus estados de bem-estar social. Curiosamente os primeiros programas sociais, como gastos públicos com educação e previdência foram implementados por conservadores alemães e liberais ingleses na virada do século XIX para o século XX. Sistemas de previdência e assistência social já existiam muito antes do estado decidir se envolver, por meio de associações de ajuda mútua e sociedades filantrópicas.
O próprio estado de bem estar social pode ser visto como decorrência tanto da prosperidade material desses países quanto da ameaça soviética, que levou indiretamente ascensão de grupos fascistas e nazistas na Europa, em contraposição aos grupos comunistas. O consenso do liberalismo, social-democracia e conservadorismo era esmagado no meio.
Os referidos críticos da liberdade de mercado recuperam um suposto passado protecionista das economias desenvolvidas como Estados Unidos durante o século XIX, apesar do nível de proteção comercial ser infinitamente inferior ao que é praticado em países emergentes como Brasil e Índia. Ignoram a abertura e integração comercial de uma próspera Argentina durante o início do século XX, e sua respectiva decadência ao se iniciar uma mudança política que priorizava o intervencionismo e controle econômico.
Exaltam o modelo de crescimento dos tigres asiáticos pautado em uma certa dose de direcionamento estatal, mas defendem para a Ámerica Latina um modelo intervencionista e isolacionista de substituição de importações ao invés de políticas de integração econômica com o resto do mundo. Os mesmos tigres asiáticos, orientados para a exportação, promoveram a abertura comercial com a importação de bens de capital, investimento em capital humano, exportações e consequentes ganhos em produtividade.
O liberalismo econômico, justamente por não ser uma massa homogênea, foi posto em prática em diferentes escalas de intensidade, e com ênfase em diferentes pilares. A realidade é que temos predominantemente uma economia mista em todos os países do mundo, oscilando entre mais ou menos participação do Estado no setor produtivo, com algumas exceções de regimes totalitários ou autoritários.
Mesmo em Cuba, considerado um país socialista, temos um mercado informal muito forte, com pessoas buscando se desvencilhar das restrições materiais impostas pelo governo. Importante destacar também que nessa ilha a economia do turismo não apresenta os mesmos rígidos controles que a economia “interna”, tendo muitos empresários e trabalhadores do setor um nível de prosperidade, liberdade e poder de compra superior aos seus pares isolados dos turistas estrangeiros.
Os índices de liberdade buscam ranquear os países nessa premissa de liberdade econômica como um todo, porém individualmente cada economia demonstra ter resultados distintos em cada pilar de liberdade. Conhecer esses pilares é fundamental para debater de maneira séria a relevância da liberdade econômica para a redução da pobreza, aumento do poder de compra das pessoas, relação com os indicadores de produtividade, e relevância para o avanço de outras liberdades consideradas políticas (ou civis).
Entre os países considerados com mais liberdade econômica, alguns possuem maior carga tributária, outros mais liberdade no sistema financeiro. Certos países europeus possuem leis trabalhistas mais rígidas que anglo-saxões (porém infinitamente mais flexíveis que o brasileiro), outros apresentam fortes subsídios ao setor agrícola.
O que é comum a todos os países prósperos e produtivos são pilares representados em um sistema judiciário funcional, com direitos de propriedade bem definidos e contratos respeitados, responsabilidade fiscal e baixa inflação, abertura comercial (para bens, serviços pessoas e capitais) e consequente integração com o resto do mundo, e principalmente um ambiente regulatório simples e claro, que promove a livre competição interna e a inovação. Situação contrária de países como o Brasil, onde regulamentações e proteções comerciais servem para proteger corporações de ofícios e monopólios já estabelecidos e privilegiados.
Liberalismo, como conceito, não deve ser limitado apenas aos debates econômicos, mas em sua essência, a defesa da liberdade individual, ou seja, não sofrer coerção (pelo estado ou por terceiros) em sua liberdade de expressão (artística, cultura, intelectual), associação, o que também se estenderia à liberdade de empreender e de trabalhar.
A expressão da individualidade por meio da arte, da ciência, do intelecto, da aptidão para certos esportes ou atividades físicas não pode ser dissociada da expressão da individualidade por meio do trabalho e da atividade empresarial e mercantil. Infelizmente tais atividade foram, através da história, desdenhadas, ou vistas com ceticismo, por intelectuais, artistas e cientistas.
Felizmente nos países considerados ricos, onde a liberdade política e econômica foi internalizada de maneira mais significativa desde o século XIX, todos podem desfrutar de algum grau de liberdade para expressar sua individualidade e buscar sua felicidade. As condições materiais, garantidas pelos excedentes das produtivas atividades comerciais e empresariais “burguesas”, permitiram que livres pensadores usassem seu tempo livre para criticar o próprio sistema de liberdades individuais, enquanto consumiam bens e serviços produzidos pelos seus algozes e consumidores com seus salários.
Se artistas, intelectuais, atletas e cientistas merecem toda liberdade possível para expressar seu potencial individual, por que essa compaixão não se estenderia aos trabalhadores e empreendedores?
Você pode questionar se liberdade econômica leva à prosperidade ou não, mas não pode questionar se produtividade leva ao enriquecimento de uma economia, ou seja, ao aumento do poder de compra das pessoas mais pobres, à diminuição da pobreza (independentemente das desigualdades relativas) e ao florescimento das atividades artísticas, culturais, intelectuais e científicas.
Se países prósperos são mais produtivos e também possuem mais liberdade econômica, a pergunta que deve ser feita é qual a relação entre produtividade e liberdade.
A segunda pergunta mais importante, que deriva da primeira, é a seguinte: qual a relação entre (falta de) liberdade e o nível de dignidade humana, entendida aqui como ausência de pobreza e ignorância, predominância da tolerância, melhores indicadores de saúde, educação e ambiente?